O conceito de “corpo-território” como ferramenta de análise do impacto da vigilância biométrica no espaço urbano: uma proposta epistemológica

Revista Latinoamericana de Economía y Sociedad Digital

Issue Especial 2

Autores: Rafaela Cavalcanti de AlcântaraORCID logo

DOI: 10.53857/RLESD.04.2023.06

Publicado: 10 marzo, 2024Recibido: 8 septiembre, 2023

Cita sugerida: Cavalcanti de Alcântara, R. (2023). O conceito de “corpo-território” como ferramenta de análise do impacto da vigilância biométrica no espaço urbano: uma proposta epistemológica, Revista Latinoamericana de Economía y Sociedad Digital(4)

Licencia: Creative Commons Atribución-NoComercial 4.0 Internacional (CC BY-NC 4.0)

Tipo de artículo:

Resumen

Es posible notar una creciente implementación de tecnologías de reconocimiento facial remoto y masivo en los más diversos espacios públicos y de acceso público en ciudades de América Latina. Este ensayo investiga si el concepto de “cuerpo-territorio” puede utilizarse como herramienta para comprender el impacto del uso de esas tecnologías, especialmente con respecto a las mujeres y los cuerpos feminizados. Para ello se recurre a estudios en el campo de la vigilancia, que se centran en las nuevas tecnologías que informatizan cuerpos, a reflexiones realizadas por investigadores latinoamericanos, a la idea de “perspectiva parcial”, presentada por Donna Haraway, y también a estudios que se dedican a ofrecer una crítica feminista respecto de las políticas urbanas. Los conceptos mencionados representan, en última instancia, puntos de partida para pensar el impacto del uso masivo del reconocimiento facial en el cuerpo-territorio de las/en las ciudades a través de prácticas extractivistas, apuntando a la necesidad de alejar una supuesta neutralidad a la hora de contemplar personas, espacios y tecnologías, en el análisis de la disputa por el espacio urbano y las nuevas formas de recolección y procesamiento de datos.

Abstract

There is a growing implementation of remote and mass facial recognition technologies in a wide variety of public and publicly accessible spaces in Latin American cities. This essay investigates whether the concept of “body-territory” can be used as a tool to understand the impact of the use of these technologies, especially with regard to women and feminized bodies. To this end, we draw on studies in the field of surveillance, which focus on the new technologies for computerizing bodies, reflections by Latin American researchers, the idea of “partial perspective”, presented by Donna Haraway, and also studies dedicated to providing a feminist critique of urban policies. In the end, the concepts referred to represent starting points for thinking about the impact of the massive use of facial recognition on the body-territory of cities through extractive means, pointing to the need to move away from a supposed neutrality when considering people, spaces and technologies, when analyzing the dispute over urban space and new forms of data collection and processing.

Resumo

Percebe-se uma crescente implementação de tecnologias de reconhecimento facial remoto e massivo nos mais diversos espaços públicos e acessíveis ao público em cidades da América Latina. O presente ensaio investiga se o conceito de “corpo-território” pode ser utilizado como uma ferramenta para compreensão do impacto do uso dessas tecnologias, em especial no que concerne a mulheres e corpos feminizados. Para tanto, recorre-se a estudos no campo da vigilância, que se debruçam sobre as novas tecnologias de informatizam de corpos, a reflexões realizadas por pesquisadoras latino-americanas, à ideia de “perspectiva parcial”, apresentada por Donna Haraway, e também a estudos que se dedicam a conferir uma crítica feminista a políticas urbanas. Os conceitos aos quais se faz referência representam, ao fim, pontos de partida para pensar o impacto do uso massivo do reconhecimento facial no corpo-território das/nas cidades por meio de expedientes extrativistas, apontando para a necessidade de afastar uma suposta neutralidade quando se contempla pessoas, espaços e tecnologias, na análise da disputa do espaço urbano e novas formas de coleta e processamento de dados. 

 

Palabras clave: reconhecimento facial, corpo-território, extrativismo, direito à cidade, mulheres e corpos feminizados.

O conceito de “corpo-território” como ferramenta de análise do impacto da vigilância biométrica no espaço urbano: uma proposta epistemológica[1]

1. Introdução

“Nosso maior compromisso é com o cidadão de bem” (Ortega et al., 2020). Assim terminava a nota divulgada para a imprensa pela administradora do metrô de São Paulo a respeito de uma ação judicial[2] que questionava um projeto milionário envolvendo reconhecimento facial nas dependências do mencionado meio de transporte. No restante do documento, o metrô explica que a ferramenta de reconhecimento facial estaria incluída em um sistema de monitoramento mais amplo, que “modernizaria” a estrutura já existente, com o objetivo que melhorar a “segurança” das pessoas passageiras, buscando reduzir incidentes relacionados a questões de segurança pública como, por exemplo, “assédio e importunação sexual” (Ortega et al., 2020).

 

Dentre outras razões, a referida frase se destaca por ilustrar – e até mesmo fomentar um debate a respeito – algumas discussões que aqui se desenvolvem. São variadas as reflexões possíveis. Dentre estas, vale pontuar que chama atenção a expressão “cidadão de bem”, conceito profundamente explorado nas eleições presidenciais de 2018 no Brasil (Carpanez, 2018).

 

No debate aqui proposto, é interessante refletir antes sobre quais corpos podem representar o chamado “cidadão de bem”. Em um primeiro momento, pode ser um desafio pensar em uma corporalidade para essa representação, uma vez que essa categoria – aparentemente oposta a uma figura “do mal” – carrega em si uma abstração. No entanto, é possível interpretar que, na nota à imprensa, o cidadão de bem seria aquela pessoa que, dentro do metrô, supostamente não contribuiria para as ocorrências e incidentes que a inovação do sistema de monitoramento busca, em tese, evitar.

 

Ao separar possíveis usuários entre cidadãos “do mal” e “de bem”, a nota pública aparenta apresentar categorias opostas e incomunicáveis, por meio das quais aparta pessoas usuárias do meio de transporte entre aquelas que seriam objeto de um compromisso de proteção e as que o sistema em questão teria como alvo, cujos atos “do mal” seriam coibidos. Trata-se de uma dicotomia que não parece contemplar a materialidade que envolve a relação de monitoramento e a noção de “segurança” no transporte coletivo, por exemplo, e o quanto essas variáveis podem atingir diversos corpos de diferentes maneiras.

 

O conceito de “corpo-território” aponta tanto para uma intersecção dinâmica e retroalimentada entre os corpos e espaços quanto para a derrubada da neutralidade desses conceitos. O conceito auxilia então na contestação de uma noção imaterial de “cidadão de bem”. Assim, o corpo-território se mostra como ferramenta para a análise do crescimento da utilização do reconhecimento facial remoto em espaços urbanos nos quais o trânsito é necessário à vida nas cidades, como é o caso da infraestrutura de transporte público na atual maior metrópole da América Latina.

 

Este ensaio recorre ao uso de reconhecimento facial remoto em lugares públicos e acessíveis ao público como ponto de partida, referindo ao que se chama “vigilância biométrica massiva”. Dados biométricos resultam da codificação de corpos e comportamentos por meio de um processamento técnico; quando mecanismos com essa finalidade são instrumentalizados para processar dados de qualquer pessoa, de forma não direcionada e indiscriminada, configura-se, comumente, a vigilância biométrica massiva (European Digital Rights, 2020; Article 19, 2021).

 

Como reação a uma crescente implementação desse tipo de ferramenta em diferentes espaços públicos e acessíveis ao público, o uso do reconhecimento facial tendo como alvo grandes grupos de pessoas tem encontrado resistência pelo mundo. É o caso da campanha #TireMeuRostoDaSuaMira (Tire Meu Rosto da Sua Mira, n.d.) e da iniciativa #SaiDaMinhaCara (Coding Rights, 2022) no Brasil, da Reclaim Your Face (Reclaim your face, n.d.) na Europa e da iniciativa global Ban Biometric Surveillance (Access Now, 2021).

 

O presente trabalho investiga se o conceito de “corpo-território” pode ser utilizado como uma ferramenta epistemológica para entender o impacto do uso de reconhecimento facial de forma massiva, em especial no concerne a mulheres e corpos feminizados. Para tanto, faz-se referência (i) a estudos do campo da vigilância que se debruçam sobre as novas tecnologias que informatizam os corpos; (ii) a estudos de pesquisadoras latino-americanas sobre feminismo(s); (iii) ao conceito de “perspectiva parcial”, apresentado por Donna Haraway, e, finalmente, (iv) a estudos que se dedicam a conferir uma perspectiva feminista às políticas urbanas.

 

  1. Do que falamos quando falamos de reconhecimento facial: um recorte de iniciativas de resistência

 

Em uma tentativa de síntese, pode-se dizer que o reconhecimento facial utilizado para identificação de pessoas que transitam em espaços públicos ou acessíveis ao público – ferramenta que compara uma só face com muitas outras, com a finalidade de encontrar combinações compatíveis – realiza o mapeamento de traços do rosto (pontos nodais) por meio de um mecanismo que, programado por algoritmos, faz um paralelo entre as informações extraídas de um rosto e aquelas presentes em um conjunto de dados sobre rostos já anteriormente mapeados e armazenados (um banco de dados). São mecanismos que atuam segundo critérios de probabilidade e estatística, equilibrando taxas de erro que dependem das pessoas responsáveis pelo respectivo desenvolvimento e programação (Asociación por los Derechos Civiles, 2017).

 

A utilização de ferramentas de reconhecimento facial nessas situações não necessita do consentimento – muitas vezes não contando sequer com a ciência – da pessoa cujos dados estão sendo coletados e analisados. São dados processados à distância dos corpos, em projetos que têm encontrado resistência nos contextos nos quais são implementados. É o caso do exemplo citado no início deste ensaio, no qual o metrô de São Paulo alega implementar o reconhecimento facial para uma suposta melhoria na segurança dos seus serviços. Reações a projetos desse tipo vêm sendo identificados em diversos lugares do Brasil (Pio, 2022). A prefeitura de Recife, Pernambuco, por exemplo, encontra resistência da sociedade civil na tentativa de implementação de relógios digitais pela cidade sob a justificativa de melhoria na segurança pública (Meu Recife, n.d.). 

 

Além disso, foi lançada, no primeiro semestre de 2022, campanha que pede pelo banimento do uso de tecnologias de reconhecimento facial na segurança pública no Brasil, sob liderança de diversas organizações e entidades (Tire Meu Rosto da Sua Mira, n.d.). Relevante mencionar ainda que representantes do setor acadêmico e do terceiro setor, recentemente, mobilizaram-se pelo protocolo de projetos de lei visando interromper determinados usos da ferramenta (Lima, n.d.). São reivindicações que possuem características em comum: colocam-se contra algum projeto, ou uma série de projetos, cuja implementação já está planejada (mesmo que em diferentes níveis) quando apresentada à sociedade em geral. Apesar de possuírem contextos e estratégias específicas, as iniciativas destacam o risco causado por uma tecnologia: o reconhecimento facial remoto. As campanhas chamam atenção para os problemas que existem quando uma parte do corpo (a face) é transformada em dados, em um contexto tecnológico em que um grande montante de informações do tipo pode ser gerada e processada a todo momento, e, nesse sentido, pedem pelo banimento de determinados usos, como é o caso da campanha brasileira que pretende abolir o uso de reconhecimento facial para fins de segurança pública (Tire Meu Rosto da Sua Mira, n.d.).

 

  1. Sobre vigilância e codificação dos corpos

 

Dentro do campo da vigilância, questões são levantadas também em estudos que destacam os impactos da implementação desse tipo de tecnologia. Van Der Ploeg (2003; 2012) se dedica a desdobramentos e consequências geradas quando os corpos são transformados em dados na era da informação. De maneira simultânea, retoma Michel Foucault quando destaca que, mesmo antes da informatização, o corpo já era central na execução de mecanismos de vigilância, apontando que as novas tecnologias fizeram com que essas práticas igualmente fossem modificadas (Van Der Ploeg, 2012).

 

Para a autora, além da atual ampliação da capacidade e a difusão da vigilância, intensifica-se a incidência sobre os corpos, o que traz um número sem precedentes de maneiras pelas quais eles podem ser submetidos a monitoramento, avaliação, análise, categorização e, então, gerenciamento (Van Der Ploeg, 2012, p. 177). Voltando às implementações do reconhecimento facial discutidas neste trabalho, não é difícil imaginar as mudanças por ela apontadas. Enquanto câmeras de vigilância comuns – já utilizadas há décadas – geram imagens que não podem facilmente ser comparadas com tantas outras da mesma natureza (Cardoso, 2010, pp. 57-58); a transformação de rostos em códigos faz com que a informação sobre determinado rosto possa ser comparada outras a informações que estejam disponíveis na mesma linguagem e, de forma automatizada, encontrar com rapidez semelhanças em bancos de dados já existentes. Automatização – conceito que é utilizado aqui como sinônimo para a expressão, em inglês, Automated Decision-Making (ADM) – é um tipo de procedimento no qual decisões são parcial ou inteiramente delegadas a pessoa ou entidade que “por sua vez, utiliza modelos de tomada de decisão executados automaticamente para realizar uma ação”[3] (Alfter et al., 2019).

 

Van der Ploeg (2012, p. 177) ainda aponta a existência de uma perspectiva (a seu ver, obsoleta), segundo a qual a informatização do corpo criaria um “duplo virtual”. Contrária a essa ideia, observa a necessidade de que pensar no quanto a chamada “informatização do corpo” pode afetar a corporificação (embodiment) e a identidade, propondo um olhar ontológico para o fenômeno, para além de considerá-lo uma mera representação do corpo (Van Der Ploeg, 2003, p. 58). Nesse sentido, é pertinente pensar sobre o quanto a transformação dos rostos em dados pode impactar os corpos aos quais eles pertencem.

 

Paralelamente ao efeito nas pessoas das quais os dados biométricos são extraídos e às possibilidades de categorização proporcionada pela “informatização dos corpos”, é também destacada a exclusão que esse cenário pode causar. Quando se refere a biometria, é necessário levar em consideração que determinados corpos não são legíveis por máquina – o que costuma ocorrer com grupos específicos, como pessoas mais velhas, crianças e/ou de determinadas etnias (Van Der Ploeg, 2012, p. 181).

 

Conrad (2009), inspirada por Van Der Ploeg, retoma Butler ao apontar o efeito normativo que a vigilância pode ter. A representação informatizada de um corpo transexual, por exemplo, pode tentar adequá-lo a categorias binárias masculinas ou femininas, ao invés de reconhecê-lo enquanto um corpo queer – podendo representar uma pressão para que tal corpo entre em conformidade com esses critérios, com a finalidade de não ser excluído do sistema (Conrad, 2009, pp. 385-386).

 

Sobre reconhecimento facial massivo, é relevante também considerar o chamado efeito inibidor (chilling effect), conceito trazido à discussão quando se problematiza os efeitos da vigilância massiva em condutas ou comportamentos, fazendo com que eles sejam reprimidos. Essa ideia parte do pressuposto de que a possibilidade de punição, rotulação, monitoramento e/ou constrangimento pode fazer com que pessoas modifiquem seus comportamentos, o que inclui o medo diante da vigilância (Lyon, 2018). Possuir um rosto e andar na cidade pode gerar abordagem por forças policiais, o que incide no ir e vir desses corpos caso o sistema em questão indique compatibilidade com informações presentes em um banco de dados – por exemplo, de pessoas procuradas pelo sistema de justiça.

 

Os efeitos da vigilância biométrica massiva, desse modo, mostram-se complexos e multifacetados, assim como o são os corpos vigiados. Por isso, o conceito de corpo-território é aqui referido.

 

  1. O conceito de corpo-território como ferramenta de análise

 

Primeiramente, é interessante considerar a síntese apresentada por Verónica Gago (2020) ao discorrer sobre o corpo-território. A autora auxilia na compreensão de que a separação entre o ser humano e o ambiente está relacionada a um pensamento marcado pela colonialidade, destacando que relações coloniais de extrativismo atingem não só os territórios, mas também os corpos. Vale dizer que aqui se utiliza o conceito de colonialidade para que se faça referência à continuidade de relações que combinam exploração, circulação do capital e noções liberais de propriedade que seguiram impactando a América Latina ao longo dos séculos até a contemporaneidade. 

 

Nesse contexto, Gago (2020) aponta para a necessidade de pensar a inserção dos países latino-americanos no mercado mundial, e se refere a Rosa Luxemburgo ao abordar a expansão colonial capitalista por meio do “avanço das fronteiras do capital através do despojo das terras, o que acaba com a autossuficiência das economias indígenas e camponesas” (p. 87); pontua que “diversos movimentos começaram a utilizar o conceito de corpo-território para situar as resistências contra as investidas neoextrativistas, protagonizadas majoritariamente por mulheres”, aludindo também a ofensivas que tratam o corpo das mulheres como território de conquista (p. 87). A autora remete ainda a 

 

[…] uma noção de corpo que não é apenas não humano, mas que ademais se refere à questão da natureza sob um ponto de vista não liberal: isto é, não se trata de um conservacionismo em abstrato, mas de enfrentar os modos de espoliação de possibilidades materiais de vida que hoje estruturam um antagonismo direto entre empresas multinacionais e Estados contra populações que são saqueadas, deslocadas e redirecionadas a novas dinâmicas de exploração. (Gago, 2020, p. 87) 

 

O termo tem uma evidente camada de autoexplicação: “[a] conjunção das palavras corpo-território fala por si mesma: diz que é impossível recortar e isolar o corpo individual do corpo coletivo, o corpo humano do território e da paisagem” (Gago, 2020, p. 107). A noção de corpo-território aponta para tanto uma intersecção dinâmica e retroalimentada entre os corpos e espaços quanto para a derrubada da neutralidade desses conceitos. Ao afirmar que o corpo-território é também objeto de novas acumulações, Gago (2020) menciona dinâmicas extrativistas frente a imóveis urbanos e, além disso, considera os territórios virtuais em sua análise, ao trazer para a discussão algoritmos e mineração de dados. 

 

Sob tal inspiração, pode-se pensar na possibilidade de interpretar a captura de dados biométricos das mulheres e corpos feminizados para a interferência no território como uma nova forma de extração, panorama que dá pistas sobre como essas novas tecnologias afetam tanto os corpos quanto suas respectivas relações no espaço urbano. As considerações desenvolvidas por Gago são, assim, uma bússola para a presente discussão. Importante destacar ainda que, ao revés da tentativa de estabelecimento de uma só definição, autoras que tratam do tema utilizam o termo como ferramenta de compreensão da realidade, assim como uma orientação prática e política, um caminho-devir, que com frequência aponta para determinados horizontes, sem contudo chegar a uma definição fechada em si mesma.

 

Cruz Hernández (2016), ao pontuar que ainda não se chegou à conclusão do significado da trama que representa o corpo-território, reflete no sentido de que, talvez, a finalidade do conceito seja gerar perguntas e contribuições desde as vozes femininas e seus questionamentos. A autora avança para uma percepção do termo, que se mostra central à discussão aqui proposta:

 

A verdade é que eu poderia dizer que o enunciado corpo-território é uma epistemologia latino-americana e caribenha feita por e a partir de mulheres de povos originários que vivem em comunidade; ou seja, a articulação corpo-território coloca a comunidade no centro como forma de vida. Além disso, ajuda todas as outras pessoas a se olharem territorialmente em diferentes escalas. Já que enfatiza a escala mais micro, mais íntima, que é o corpo. Onde nosso corpo é o primeiro território de luta[4]. (Cruz Hernández, 2016, p. 43)

 

Uma vez que este trabalho busca investigar se o conceito contribui para a análise sobre as implicações da vigilância biométrica nas cidades, chama atenção quando a autora se refere ao corpo-território como uma “epistemologia latino-americana e caribenha” (Cruz Hernández, 2016). Nesse sentido, o corpo-território aponta para uma perspectiva de observação que coloca como central a coletividade, apontando o próprio corpo como uma “escala primeira de territorialidade” – e, como consequência, como um primeiro espaço de luta e reivindicação. 

 

  1. Vigilância biométrica e corpo-território

 

A vigilância biométrica remota nas cidades interfere no espaço urbano ao atingir diretamente os corpos que estão naquele espaço. Voltando ao exemplo do reconhecimento facial no metrô de São Paulo, é importante considerar que ferramentas não são implementadas em um vazio, sendo importante pensar quais relações existem naqueles (corpos-)territórios no que diz respeito à vigilância.

 

A ação de corpos femininos e feminizados em espaços da cidade, como ruas, praças e parques, é observada ao longo da história, sendo um cenário acompanhado por constante vigilância (Tharoor, 2019). As Mães da Plaza de Mayo, na Argentina, são exemplo de apropriação do espaço público para agendas insurgentes, havendo registro de que o movimento tenha sido submetido a policiamento constante (Tharoor, 2019).  

 

Desde a segunda metade do século XX, ocorre um aumento significativo da utilização de expedientes da ciência e tecnologia com fins de controle social (Marx, 2001). Já aparecem, nesse momento, tecnologias de vigilância, que usam dados e até mesmo biometria com tais finalidades. A respeito desse uso, Marx (2001) lembra que os mais antigos sistemas de identificação biométrica, como os desenvolvidos por Cesare Lombroso, já estavam associados à engenharia de controle social. Ao mesmo tempo, o autor destaca que os mecanismos de controle contemporâneos se caracterizam por ser mais extensivos, intensivos e estarem conectados a uma rede de troca de informações. Barreiras físicas e temporais são, então, transcendidas nesse contexto em que o “controle pode ser remoto e desterritorializado” (Marx, 2001). 

 

Ao reforçar a existência da territorialidade dos corpos (ou de partes destes), o corpo-território também contribui para a identificação de mecanismos de descontextualização e desterritorialização. Sendo a territorialidade um conceito relacionado com autonomia, resistência e potência (Haesbaert, 2020), pensar nos corpos-territórios auxilia na compreensão sobre os impactos desse tipo de tecnologia frente a corpos femininos e feminizados, em especial quando se pensa nas diferentes interações entre tais corpos e a cidade – o que abrange categorias que vão de trabalho a protesto, por exemplo.

 

A noção de corpo-território é, desse modo, também um “espelho” frente à lógica engendrada nos projetos do reconhecimento facial remoto. A metáfora do espelho-reflexo diz respeito a propostas que têm uma materialidade em comum – o corpo, a face transformada em código, e o território, o ambiente que se monitora com a biometria. Simultaneamente, há um limiar que as coloca em oposição: a postura em relação à neutralidade. 

 

  1. Um diálogo entre corpo-território e perspectiva parcial

 

Donna Haraway (2009), cuja produção acadêmica se debruça também nas perspectivas no entorno dos corpos, pode se somar à caminhada que aqui se propõe; em especial, por meio de suas considerações sobre “saberes localizados”, contexto no qual aponta que as sujeitas que reivindicam essa produção do saber se colocam como “outros corporificados, a quem não se permite não ter um corpo” (p. 7). Esses “outros” (ou “outras”) podem, aqui, ser vistos como aqueles nos quais o corpo – e o que ele representa – não pode almejar representações neutras e/ou universais. 

 

Haraway (2009) menciona a “descorporificação” impulsionada por uma história da ciência e conectada a manutenção de práticas hegemônicas – em referência a uma “perfeição na história da ciência vinculada ao militarismo, ao capitalismo, ao colonialismo e à supremacia masculina” – a qual almeja o distanciamento do “sujeito cognoscente de todos e de tudo” (p. 19). Para a autora, a “perspectiva parcial” – por meio da qual a pessoa que observa e faz ciência se coloca enquanto um corpo específico no mundo – promoveria uma visão objetiva, por prescindir de uma tentativa de observação/visão ilimitada.

 

Uma ideia conectada a esse chamado científico é resumida em uma declaração feita por Haraway (2009) no âmbito dessa discussão: “[a]s histórias da ciência podem ser eficazmente contadas como histórias das tecnologias” (p. 28). A ideia funciona também como uma síntese que contribui na investigação aqui proposta, considerando que novas tecnologias de vigilância são com frequência apresentadas como mecanismos objetivos e exatos para a leitura codificada dos corpos na cidade, o que supostamente traria benefícios coletivos em termos de políticas públicas urbanas. Para fins do presente trabalho, considera-se novas tecnologias de vigilância aquelas que se desenvolvem ou se potencializam com o big data e as possibilidades proporcionadas pelo grande volume e variedade de dados gerados a todo momento.

 

Ainda desenvolvendo a ideia anterior, Haraway (2009) faz perguntas valiosas para a presente análise, ao indagar sobre “Como ver? De onde ver? Quais os limites da visão? Ver para quê? […] Nos olhos de quem se joga areia? Quem usa viseiras? Quem interpreta o campo visual? Qual outro poder sensorial desejamos cultivar, além da visão?” (p. 28). Transpondo as perguntas para a materialidade dos projetos que levam à vigilância biométrica nas cidades, pode-se, por exemplo, perguntar: para quem é “positiva” a existência de um monitoramento que mapeia e guarda informações codificadas sobre corpos que transitam no meio urbano? Como os dados recolhidos são processados e instrumentalizados, e por quem o são? O que o lugar do mundo desses olhos que observam e dos corpos observados informa?

 

Assim, o corpo-território, enquanto enunciado, pode ecoar como prática da perspectiva parcial, contribuindo para a análise do impacto do uso do reconhecimento facial massivo. Isso porque o corpo-território lembra que a observação da relação das pessoas com seu entorno deve levar em consideração os marcadores que já incidem tanto sobre o corpo quanto sobre o território em questão. 

 

Relevante também pontuar que Haraway propõe que se leve em consideração que o corpo que observa é contraditório e complexo, estruturante e estruturado (Haraway, 2009, p. 30), contexto no qual é importante destacar que o corpo-território, como apresentado hoje, é mais uma orientação, um caminho, do que um conceito finalizado – até mesmo porque a relação corpo-território, por definição, se faz a partir de conceitos mutáveis e em diálogo.

 

Quando a autora afirma que “saberes localizados requerem que o objeto do conhecimento seja visto como um ator e agente, não como uma tela, ou um terreno, ou um recurso” (Haraway, 2009, p. 36), colabora na compreensão de desdobramentos nos quais a lente do corpo-território implica, quando utilizada na análise da vigilância biométrica. Há de se refletir, portanto, sobre marcadores étnico-raciais, de gênero e de sexualidade que caracterizam a interação dos corpos e territórios em questão, e também sobre as dinâmicas que incidem naquele território, assim como nas disputas que existem nas cidades.

 

  1. Corpos, territórios urbanos e reconhecimento facial massivo

 

Em entrevista a um documentário que aborda intersecções entre reconhecimento facial, gênero, raça e território, a pesquisadora Mariah Rafaela Silva aponta que o reconhecimento facial tem o potencial de ser guiado por princípios higienistas, operando, nesse sentido, em lugares estratégicos no território e podendo organizar a sociedade segundo critérios anteriormente desenhados (Coding Rights, 2021). A fala da pesquisadora tem interlocução com o que considera Cruz Hernández (2016) a respeito do saber construído no entorno do corpo-território, que leva ao questionamento do espaço como um lugar neutro. E, sendo o espaço uma construção social, a autora lembra que essa estruturação tem referentes patriarcais, contexto no qual mulheres e corpos femininos seriam ignoradas como parte do território, o que se agravaria quando se leva em consideração fatores como etnia, classe, raça e idade (Cruz Hernández, 2016, p. 41).

 

A vigilância biométrica remota é, assim, implementada em um espaço resultante de construções sociais – as quais seguem se desenvolvendo. Dessa forma, aqui se entende que o corpo-território colabora na compreensão de que as relações existentes no ambiente no qual essas ferramentas intervém são fundamentais para pensar o impacto dessas “mais novas” tecnologias. Interessante, então, mencionar as considerações de Morozov e Bria, quando se debruçam sobre as chamadas “cidades inteligentes” (smart cities):

 

[…] as cidades são também motores da acumulação capitalista, […] são tanto agentes econômicos como agentes sociais, e […] a maioria dos processos ocorridos nas cidades é impulsionada por forças econômicas e políticas que atuam há muito tempo – desde muito antes de vários dos atuais atores do mercado da smart city terem surgido. (Morozov e Bria, 2019, p. 17)

 

O reconhecimento facial é frequentemente incluído no guarda-chuva dos projetos rotulados como “cidade inteligente”, conceito que pode abranger projetos de implementação de tecnologias de vigilância nas cidades sob a justificativa de solucionar a chamada “falta de segurança” ou “violência urbana”. Existem diversas definições e perspectivas críticas sobre o que esse tipo de projeto “inteligente” seria, podendo se referir desde a centralidade das pessoas e melhoria da qualidade de vida urbana de modo sustentável até, o que é mais comum, à utilização de tecnologias para inovação nos serviços públicos urbanos (Organização das Nações Unidas, 2015). 


As dinâmicas sociais e econômicas que já incidem sobre as cidades são essenciais, portanto, para pensar no quanto a inserção de novas ferramentas podem impactar os corpos que vivem no meio urbano. Nesse sentido, é válido mencionar também que Morozov e Bria (2019) se referem, por exemplo, a um “direito à cidade digital”, contexto no qual novas tecnologias seriam instrumentalizadas para o benefício da população, quadro que se relaciona com regimes alternativos de propriedade de dados e a tomada de controle, pelas cidades, das suas políticas digitais. Haveria, então, o desafio de “passar do capitalismo de vigilância para um sistema capaz de compartilhar dados e de experimentar novas formas de cooperação e de inovação social voltadas a repensar modelos economicamente sustentáveis e de bem-estar futuro” (Morozov e Bria, 2019, p. 180). A respeito, Zuboff (2018) nomeia capitalismo de vigilância “uma nova lógica de acumulação, profundamente intencional e com importantes consequências”, a qual “procura prever e modificar o comportamento humano como meio de produzir receitas e controle de mercado”; segundo a autora, este capitalismo “se formou gradualmente durante a última década, incorporando novas políticas e relações sociais que ainda não haviam sido bem delineadas ou teorizadas” (p. 18).

 

O exercício do referido do chamado “direito à cidade” implica, dentre outros aspectos, em viver a cidade coletivamente, participando das decisões sobre ela. Isso ocorreria se nas cidades houvesse a apropriação dos novos aparatos tecnológicos para o benefício coletivo, assim como a decisão coletiva sobre a implementação desses mecanismos fosse priorizada em detrimento de outros interesses. Segundo Harvey: 

 

[O] direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo e não individual, já que essa transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização. A liberdade de fazer e refazer as nossas cidades, e a nós mesmos é, a meu ver, um dos nossos direitos humanos mais preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados. (Harvey, 2017)

 

As contribuições do pensamento feminista para análise do espaço urbano ajudam a desenvolver uma perspectiva crítica que, ao colocar a condição de gênero como chave para interpretar as cidades, denuncia o apagamento do protagonismo das mulheres na produção do espaço urbano, evidencia diferentes agentes que participam da respectiva construção e questiona a perspectiva de que esse ambiente – e o acesso a seus bens – seria homogêneo (Villagrán, 2016). Ao mesmo tempo, esses estudos têm apontado a relevância de não se considerar as mulheres como uma categoria uniforme, mostrando que uma perspectiva de gênero não só demonstra que as experiências urbanas são diferentes entre homens e mulheres, mas também aponta diferenças entre as próprias mulheres (Villagrán, 2018, p. 20).

 

Essas análises expõem que a construção patriarcal das cidades – baseada em “falsas dicotomias” que separam público e privado, trabalho produtivo e reprodutivo, centro e periferia – contribuiu para forjar representações espaciais do “feminino” e do “masculino”, invisibilizando as mulheres nas cidades e produzindo bairros, ruas, transportes e serviços que não são apropriados às necessidades desses corpos (Villagrán, 2014; 2016). 

 

Além dos projetos aqui referidos envolverem a participação da iniciativa privada (Venturini e Garay, 2021), a falta de debate sobre a utilização desse tipo de iniciativa e a necessidade desses aparatos para a melhoria da vida urbana coletiva mostra-se como pedra de toque para pensar sobre como esse tipo de projeto vai ao encontro (ou não) da agência e dos desejos de uma variedade de corpos na cidade.

 

Nesse sentido, cabe destacar aqui o setor privado como ator fundamental na securitização e vigilância nos espaços públicos da cidade neoliberal latino-americana – setor que, por vezes, atua na gestão e controle do meio urbano (Firmino, 2018). Exemplos muito citados, são alguns mecanismos vistos como “legados” de grandes eventos esportivos ocorridos no Brasil em 2014 e 2016, como é o caso do Centro de Operações Rio (COR), implementado no âmbito do projeto Smarter Cities, da IBM, tratando-se de uma estrutura de controle em relação a uma série de atividades diárias do Rio de Janeiro (Firmino, 2018). 

 

Voltando ao corpo-território, Veronica Gago (2020) também se refere ao conceito como um “transbordamento do corpo” desde onde se pode confrontar o que chama de “extrativismo ampliado”, definindo assim “todas as formas de espoliação e exploração (do extrativismo propriamente dito, de matérias-primas, ao extrativismo digital e financeiro) que articulam a máquina de valorização capitalista” (p. 110). É possível imaginar, nesse contexto, no quanto a extração do lucro pode guiar tais relações extrativistas: atores-chave da referida “máquina de valorização capitalista” utilizam de expedientes que atingem os corpos de maneira cada vez mais sofisticada, a fim de desenvolverem atividades empresariais. No ecossistema de projetos que fazem uso do reconhecimento facial remoto e massivo, possibilidades, nesse sentido, podem ir desde a venda de sistemas para governos até ganhos secundários, que podem vir do acesso a banco de dados contendo um número crescente de informações.

 

Seria, então, a aplicação de tecnologias de reconhecimento facial nos corpos em trânsito na cidade uma maneira de extrativismo expandido? Para além dos expedientes econômicos e financeiros que já incidem sobre o espaço urbano e sua população, seria esta mais uma forma de extrair lucros frente às materialidades existentes?

 

A resposta a essas perguntas parece ser afirmativa quando se considera que Gago (2020) destaca a necessidade de não reduzir o extrativismo a um procedimento conectado diretamente a matérias-primas, mas sim pensar na linguagem extrativista como uma “lógica de valorização” (pp. 119-120). 

 

Segundo Sadowski e Pasquale, a “biometria apresenta novas formas de converter dados em lucro, uma figura de despojamento dos corpos (e das suas ações) para que deles se possa extrair cada vez mais informações acionáveis[5] (Sadowski e Pasquale, 2015). Corpos se refletem em dados valiosos enquanto transitam pelas cidades, ora nas ruas, ora na utilização do transporte público, atendendo a interesses alheios e estabelecendo condições de continuidade com forças e dinâmicas já conhecidas no meio urbano.

 

  1. Uma tentativa de conclusão para iniciar novos debates

 

No presente ensaio, foram apresentados alguns pontos de partida que contribuem na análise do impacto do uso massivo do reconhecimento facial no corpo-território, levando à necessidade de se a afastar pretensões de neutralidade no tocante à compreensão de pessoas, espaços e tecnologias, quando se fala da disputa do espaço urbano e novas formas de coleta e processamento de dados. Sendo o próprio corpo o primeiro espaço que se reivindica na cidade, os conceitos aqui abordados ajudam a compreender as implicações oriundas de tecnologias que codificam essas corporalidades.

 

Aqui se observou que os estudos sobre vigilância mostram que esta encontra-se historicamente relacionada aos corpos; apontando ainda que a informatização dos corpos não é uma mera representação causando impactos de caráter normativo. Sendo que, no contexto em que se pensa nos efeitos da vigilância biométrica massiva, feminismo(s) latino-americanos fomentam a consideração da pluralidade dos corpos e do próprio transbordamento da compreensão de “corpo”, a noção de corpo-território colabora no entendimento dos usos dos dados biométricos, desde uma perspectiva que leva em consideração sofisticações e/ou continuidades trazidas pelas ferramentas aqui discutidas.

 

O conceito corpo-território potencializa o percebimento de uma diversidade de corpos e o afastamento de dicotomias (o corpo e a cidade; o individual e o coletivo), auxiliando, assim, na reflexão sobre impactos das novas tecnologias de vigilância, desde uma perspectiva corporificada, situada e parcial – fazendo aqui uma referência a Haraway. 

 

Esse olhar proposto para as interações dos corpos-territórios, cidades, faces e dados biométricos, por sua vez, estabelece um diálogo com reivindicações e perspectivas feministas a respeito da construção dos espaços urbanos e sua relação com expedientes patriarcais. Este trabalho pretende lançar atenção sobre a necessidade de se considerar apagamentos e invisibilizações, denunciados por perspectivas feministas que emanam de diferentes tradições e áreas do conhecimento, propondo uma análise dos efeitos da vigilância biométrica desde a materialidade das territorialidades que são ocupadas e vividas nas cidades.

 

É relevante ainda pensar em outras questões, além das aqui levantadas, que podem servir de provocação para aprofundamento do tema. Investigações posteriormente podem se dedicar, por exemplo, (i) a uma possível uma economia política na implementação de tecnologias biométricas, que dificultaria um debate transparente e amplo sobre esse tipo de projeto, priorizando interesses financeiros; (ii) ao efeito inibidor causado a corpos submetidos de maneira mais intensa às forças de repressão estatal; (iii) à possível repressão de movimentos feministas que eclodem na região e ocupam as ruas das cidades; e, finalmente, (iv) às agendas de gênero propostas para a mudança em políticas públicas urbanas, a fim de refletir como essas demandas interagem com a implementação de sistemas de reconhecimento facial.

 

Relevante também pontuar que o conceito de corpo-território pode funcionar como lente para entender os projetos rotulados como “cidades inteligentes” (smart cities), até mesmo porque o reconhecimento facial é com frequência combinado a outras ferramentas e apresentado em meio a agendas de “inovação”, “modernização” e “otimização” da política urbana. Uma conexão mais aprofundada com a literatura crítica a esses projetos, como o trabalho de Morozov e Bria (2019), já citado, e Cardullo et al. (2019), mostra-se potencialmente frutífera no que concerne também a pensar sobre como a crescente dataficação da vida cotidiana pode ser voltada para o bem comum.

 

O questionamento da neutralidade apresentado pelo corpo-território gera um diálogo importante se somado a propostas de smart cities centradas nas pessoas e/ou nos direitos humanos (Kitchin, 2019; UN-Habitat, n.d.; Kempin Reuter, 2020). O conceito aqui discutido pode assim acrescentar ângulos aos estudos que já são feitos a respeito daquelas cidades e controle social, dedicados ao pensamento de Foucault e Deleuze, por exemplo – debate elaborado por Sadowski e Pasquale (2015).

 

O presente é de questionamentos, até mesmo pela novidade que esse tipo de projeto representa, havendo um momento propício para se aprofundar em desafios que determinados corpos vêm travando na América Latina, à medida que ocupam a cidade e exercem atos de (r)existência.

 

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Biografia da autora

Rafaela Cavalcanti de Alcântara é bacharela em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com mestrado em Ciências Jurídicas com ênfase em Direitos Humanos pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), contexto no qual desenvolveu dissertação de inspiração etnográfica com foco em direito à moradia e à cidade. Atua no âmbito dos direitos digitais desde 2019, tendo trabalhado anteriormente com desenvolvimento comunitário e empoderamento legal. Como pesquisadora, vem analisando a relação entre tecnologia, direito à cidade e gênero.

Notas

Notas
1 O presente ensaio foi desenvolvido no contexto dos debates conduzidos na disciplina “Tópicos Especiais em Vigilância: Ciência, Gênero e Violência”, ministrada pelas professoras Simone Gomes e Yasmin Curzi, dentro do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a qual a autora cursou como aluna especial, e agradece imensamente às professoras pelo tempo, dedicação, atenção e aprendizado proporcionado. A autora também agradece pelos debates fomentados pela campanha “Tire Meu Rosto da Sua Mira”, cuja construção acompanhou enquanto integrante da equipe de Direitos Digitais da Artigo 19 Brasil e América do Sul. Do mesmo modo, construção coletiva da iniciativa inspirou as reflexões aqui elaboradas.
2 Dois anos depois, em abril de 2022, o mesmo tribunal suspenderia, via decisão liminar (provisória), a implementação do reconhecimento facial pelo metrô de São Paulo (Sakamoto, 2022). Essa decisão seria revertida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em outubro do mesmo ano (Freitas, 2022). A autora do presente trabalho informa que participou de articulações no entorno da citada ação judicial, enquanto atuava na equipe de Direitos Digitais da Artigo 19 Brasil e América do Sul, organização que integrou até o final de 2022; nesse contexto, o conteúdo deste ensaio não necessariamente reflete o posicionamento da citada entidade.
3 Tradução própria.
4 Tradução própria. No original, em espanhol: “Lo cierto es que podría decir que la enunciación cuerpo-territorio es una epistemología latinoamericana y caribeña hecha por y desde mujeres de pueblos originarios que viven comunidad; es decir, la articulación cuerpo-territorio pone en el centro lo comunitario como forma de vida. Además a todas las demás personas nos ayuda a mirarnos territorialmente desde distintas escalas. Puesto que pone énfasis en la escala más micro, más íntima, que es el cuerpo. Donde nuestro cuerpo es el primer territorio de lucha”.
5 Tradução própria. No original, em inglês: “Biometrics present new ways to convert data into profit, a figurative strip-mining bodies (and their actions) so that ever more actionable information can be extracted from them”.